06 fevereiro 2010

"Aos sete anos, projetava que minha vida estaria resolvida aos 37. Administraria somente a felicidade. Dei o prazo de três décadas para não me preocupar. Talvez o paraíso naquela época fosse cabular temas, não ir à escola, muito menos ser submetido às provas. Não mirabolava encargos, superações e dificuldades. Até porque a vida adulta é distante, uma velhice para criança.
Recordo a atmosfera do que imaginava. A sensação de alívio do futuro. A felicidade seria estável e permanente. Era uma fórmula que deveria encontrar e adotá-la no restante dos dias. Algo como a receita de galinha recheada da avó. Uma vez feito o prato, ele se repetiria eternamente.
Não enxergava o estado provisório e fugaz do sentimento, um clarão que nos ajuda a suportar depois o escuro. Hoje entendo que a felicidade é rara, relampeia, olhamos onde estão nossas coisas e seguimos tateando com mais facilidade.
Não sou sinônimo de sucesso. Moro provisoriamente na residência materna, tenho duas separações, sequer possuo algum imóvel. Deixei duas vidas, duas casas, tudo o que construí e acumulei ficou para trás. Caso não tivesse me divorciado, estaria confortável e poderia investir na bolsa de valores. Guardo a biblioteca em centenas de caixas na garagem, não há como consultar os livros. Os rendimentos são subjetivos, provados pelos extratos bancários.
Mas não pretendo ser diferente, não entrarei no apartamento de amigos ricos e fingirei igualdade. Não peço emprestados outros mundos para aliviar o meu. Estou contaminado das manias para mudar.
Apesar da fragilidade, não me coloco como um coitado, uma vítima de decisões erradas. A cada mês, sou obrigado a inventar um salário. É assustador e delicioso. Eu perco meu emprego todos os dias. Enviúvo compromissos e caso com expectativas. A rotina não é interrompida por finais de semana. Domingo e terça-feira são iguais. Não me formei em medicina para justificar plantões, ocupo a família com minhas desocupações.
Espumo águas paradas. Qualquer desastre não é trágico. Qualquer desmemória não é o fim. Sou rápido o suficiente para me digitar de novo. Desde o início. Não desmereço as frases porque já foram escritas.
Os filhos não se acostumaram com a atmosfera instável, acham que sofro à toa e que me alegro ainda mais à toa. A namorada tenta esclarecer as extravagâncias. Na casa dela, não consigo relaxar, banco a faxineira. Passo aspirador, lustro mesas, lavo a louça e dobro as roupas para brincar que é minha casa. Ela enlouquece, mas sua ternura atrapalha a raiva. Sinto saudade de varrer a rua. Saudade não é arrependimento.
Há gente que se gaba em dizer que cumpriu o sonho dos sete anos. Seguiram à risca a ambição de pequenos.
Eu fico com dó da coerência. Desse jogador de futebol que não admitiu a confusão vocacional. Dessa bailarina que não desobedeceu ao contexto. Desse cantor que não reparou na encruzilhada.
Nossa cultura valoriza demais o planejamento. Como se a linha reta fosse uma virtude.
Eu não fui o que minha infância traçou. Aquilo era fantasia. O que sei fazer é recomeçar e frustrar condicionamentos.
Para um escritor, seria uma enorme falta de criatividade ser o que imaginei quando criança. "

...um sentimento universal por Fabrício Carpinejar

impossível descrever o efeito desse texto em mim!

14 comentários:

Tiburciana disse...

Realmente precisava de algo assim hj, vou até sair da cama agora
bjos

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

Ah! Carpinejar e suas palavras ... como toca fundo em nosso ser interior ... arromba todas as gavetas trancadas a sete chaves e nos trás de volta à vida ...

adoooro

bjux

She disse...

Caramba! Sensacional! Muito bom mesmo! Todos nós nos enxergamos aí, nem que seja em algum momento da vida, show!
Bjooo

Luna Sanchez disse...

Textos assim me satisfazem a alma.

^^

Beijo, beijo.

ℓυηα

Fernanda disse...

termino o texto,pensando em como seria bom se tivessemos os mesmos problemas da infancia...

Ju ♥ disse...

não me lembro quais eram as minhas projeções pros 'inta', só sei q tinha certeza de q depois do 'inte' eu adotaria uma criança, assim como ele também não fiz o q planejei, moro na casa dos pais, salário é uma coisa desconhecida em meu vocabulário e planos? nenhum, vivo cada dia como se fosse o último.
se sou feliz? demaaaaais!
bjs

Natacia Araújo disse...

Uau! Não conhecia o texto... Maravilhoso de revigorar qualquer um.
A vida e essas surpresas que nos frustram os planos todo o tempo...
perfeito!
beijo grande!

Anônimo disse...

Que delícia!
Que delícia!
Que delícia de palavras, misturadas e delatoras de uma realidade que nos envolve e absorve.
Que delícia saber que há poesia e leveza nos descompassos da vida. Nessa coisa que às vezes não dá certo mas que mesmo assim nos impulsiona para um desconhecido atraente e misterioso.

Amei ler isto em uma segunda feira que promete!
Bjsss

Juan Moravagine Carneiro disse...

Ainda nõa consigo comentar este texto...só posso dizer que ele me fez repensar muitas coisas!

abraço

Ferdi disse...

Texto lindo mesmo;

Daiany Maia disse...

Mariah,

Esse texto veio a calhar, isso sim parace um texto cotidiano, possível, da vida real, um texto de alguém que nasceu e v i v e u. Com todos os atributos que isso traz.

Adorei.

bjo

Daiany Maia disse...

Mariah,

Esse texto veio a calhar, isso sim parace um texto cotidiano, possível, da vida real, um texto de alguém que nasceu e v i v e u. Com todos os atributos que isso traz.

Adorei.

bjo

Daiany Maia disse...

Mariah,

Esse texto veio a calhar, isso sim parace um texto cotidiano, possível, da vida real, um texto de alguém que nasceu e v i v e u. Com todos os atributos que isso traz.

Adorei.

bjo

Daiany Maia disse...

Mariah,

Esse texto veio a calhar, isso sim parace um texto cotidiano, possível, da vida real, um texto de alguém que nasceu e v i v e u. Com todos os atributos que isso traz.

Adorei.

bjo